Há um bom tempo escrevi um artigo nessa coluna que tratava da utilização da tecnologia virtual no combate às fobias e à dor. Um dos destaques tecnológicos destinava-se à distração de pacientes que haviam sofrido queimaduras – graves ou não – através de softwares que apresentam imagens 3D de paisagens recheadas de neve e cachoeiras com águas cristalinas.
A via tecnológica obviamente não surgiu para substituir completamente os tratamentos medicamentosos tradicionais, mas dada a importância da dor no cotidiano das pessoas, quaisquer formas de combatê-la eficazmente sempre é bem-vinda na medicina.
E por que sentimos dor? Ela sempre deve ser considerada “do mal”? Ela exerce algum papel no funcionamento do organismo?
A natureza da dor
Parece-nos que o significado da dor não se manteve durante a evolução das civilizações. Por exemplo, na Grécia Antiga a dor era concebida como um ser que se alimentava de uma vítima. No século XII em plena era medieval a dor era associada a um castigo ou destinada aos fracos, como as mulheres, crianças, velhos e doentes, contexto que foi modificado logo em seguida, no século XIII, cujo entendimento da dor passou a ser uma dádiva dada aos mais fracos visando a sua salvação eterna.
Já bem recentemente, a Associação Internacional para o Estudo da Dor – IASP – resolveu criar uma Subcomissão de Taxonomia da Dor que ajudasse a definir um conceito senão único, mas que pudesse ser de consenso dos profissionais da área de saúde. O resultado foi esse: dor é “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada com lesão tecidual real ou potencial ou descrita em termos de tal lesão”.
A despeito do firmamento do conceito, o estudo e entendimento da dor não é tarefa simples, principalmente porque a sua causa pode extrapolar os fenômenos neurofisiológicos e tangenciar elementos psicológicos, sociais e culturais. Somado a isso, existe o conceito de “percepção” da dor que pode variar ao ser influenciado por fatores diversos como fadiga, depressão, raiva, medo, ansiedade e sentimentos de desesperança ou desamparo. Isso significa dizer que a intensidade de uma lesão pode ser percebida de forma diferenciada por pessoas diferentes. Eis então o grande desafio de médicos e pacientes: como se portar diante dessa multiplicidade de variáveis e fatores envolvidos com o conceito da dor?
Dor do bem ou dor do mal?
Evidentemente que nenhum ser vivo em sã consciência quer sentir dor. Ela, entretanto, costuma fazer parte do cotidiano das pessoas, principalmente nas de idade avançada. Para se ter idéia, estima-se que 80% a 85% dos indivíduos com mais de 65 anos têm pelo menos um problema significativo de saúde que as predisponha a sentir dor. As dores crônicas são exemplo explícito de malefício que atinge a população. Entendida como a dor que se mantém após a cura da lesão inicial e que pode persistir por semanas ou meses, ela é considerada mais do que um simples sintoma, é tomada mundialmente como uma verdadeira doença cujo sofrimento causado é totalmente desnecessário e danoso à sobrevivência.
Pesquisas indicam que nos EUA existem uma prevalência de cerca de 30% de dores crônicas na população em geral. Isso representa um prejuízo para o setor de saúde do país em torno de 130 bilhões de dólares considerando-se somente os custos diretos com medicamentos, intervenções, aposentadorias precoces e diminuição da produção laborativa. Somados os custos indiretos, o prejuízo avança outros milhões. No Brasil não há dados concretos sobre a prevalência de dores crônicas, o que impede de se fazer um cálculo dos prejuízos da área da saúde, mas acredita-se que o percentual de doentes seja padrão no mundo.
Se por um lado as dores crônicas poderiam ser consideradas as “dores do mal”, por outro podemos observar a existência das dores consideradas “dores do bem”. Num primeiro impulso, nosso ceticismo nos alertaria para um engano na colocação “do bem”. Mas é isso mesmo que indica grande parte de médicos, biólogos e enfermeiros. Em geral eles consideram as dores agudas como um sinal de alerta para um perigo iminente, o que significa que a dor passa a ter uma função de proteger o organismo, mostrando que determinados limites não podem ser transgredidos.
Isso não é difícil de ser comprovado: risque um fósforo e coloque a mão sobre a chama. Imediatamente a sua via sensorial para a dor (via nociceptiva) vai trabalhar e informar-lhe sobre o perigo; ação e reação, sua mão vai voar para longe do fogo.
Existem estudos mais aprofundados sobre a importância da dor na formação do nosso sistema nervoso. Pessoas que possuem a síndrome analgesia congênita – que as impedem de ter sensibilidade à dor – são exemplos vívidos dessa importância. Elas acabam por serem cerceadas de uma vida comum, sendo submetidas a viver constantemente numa bolha, dado o risco que correm de se lesionar em atividades das mais corriqueiras. Normalmente elas possuem movimentos mais grosseiros porque não aprenderam a se movimentar direito, justamente devido à falta de retorno do ambiente com a sensação da dor.
Portanto, se as ditas “dores do mal” nos atrapalham, nos deixam tristes e incapacitados, não fosse pelas “dores do bem” a espécie humana e demais seres vivos não teriam sobrevivido e evoluído nas suas formas biológicas como o fizeram ao longo dos tempos.
Publicado na edição 10.863, de quarta, quinta e sexta-feira, 7, 8 e 9 de agosto de 2024 – Ano 100