Presente de final de ano

José Mário Neves David

0
56

No apagar das luzes do ano que recentemente se findou, o Poder Executivo federal presenteou os brasileiros com uma porção generosa de insegurança jurídica. Com a edição da Medida Provisória 1.202, publicada em 29 de dezembro de 2023 (MP 1.202), em uma única tacada três importantes matérias de natureza tributária foram sumariamente modificadas, com efeitos imediatos, enquanto a maioria da população já vestia as roupas brancas e sequer pensava em ler o Diário Oficial da União. Uma jogada rasteira contra o contribuinte brasileiro.

A alteração mais impactante diz respeito à revogação da desoneração da folha de pagamentos, uma medida adotada em 2011 e que vinha sendo renovada pelo Congresso Nacional a fim de reduzir o custo da contratação formal de mão-de-obra no país e fomentar a geração de postos de trabalho. A desoneração consiste na substituição da contribuição previdenciária de 20% sobre a folha de salários por um recolhimento de 1% a 4,5% sobre a receita bruta de empresas de 17 setores da economia brasileira – os que mais empregam no Brasil, dentre os quais os de transportes, construção civil e call centers.

Com a edição da MP 1.202, o incentivo fiscal da desoneração da folha de salários, que recentemente foi renovado até 2027 pelo Parlamento através da edição da Lei 14.784/2023, será gradual e sistematicamente reduzido. Essa modificação é grave, já que contraria a vontade popular. Explico: o Congresso Nacional, formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, promoveu a renovação da medida até 2027, e a Presidência da República, em prerrogativa constitucional, vetou essa renovação. Até aí, tudo bem, está na regra do jogo político e constitucional. O Parlamento, contudo, derrubou o veto, também sob guarida constitucional, e dessa forma encerrou o assunto, já que representa o Povo brasileiro e a vontade popular é soberana. O Poder Executivo editou, então, a MP 1.202 e, na prática, “derrubou a derrubada do veto”, o que não é permitido no sistema constitucional brasileiro. Uma clara afronta à decisão dos representantes eleitos pela população.

A segunda – também polêmica – alteração promovida pela MP 1.202 corresponde à limitação da compensação de créditos superiores a R$ 10 milhões e reconhecidos por decisão judicial definitiva. Isto é, em disputas judiciais em que o contribuinte vence a União, gerando créditos de natureza fiscal a serem utilizados para redução do pagamento de tributos, agora a utilização desses créditos fica limitada a 1/60 ao mês. É uma forma indireta de aumento da arrecadação, já que limita substancialmente e difere ao longo do tempo o abatimento dos tributos a recolher, além de alongar a agonia do contribuinte que, mesmo após ganhar uma disputa judicial de anos, ainda se vê obrigado a usar o “prêmio” da disputa em doses homeopáticas.

Por fim, uma terceira medida implementada pela MP 1.202 é a de abruptamente encerrar o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), instituído pela Lei 14.148/2021 e que zerou a alíquota de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins por cinco anos para empresas do setor de eventos, altamente impactadas pela queda de receitas decorrente da pandemia. O benefício do Perse, que se estenderia pelo menos até 2026, foi, de repente, encerrado. Isso impacta diretamente o planejamento estratégico e o orçamento das empresas do setor, que contavam com essa iniciativa por mais alguns anos e, de repente, foram jogadas ao mar.

Nesse cenário, conclui-se que a MP 1.202 foi uma bomba para parcela significativa dos contribuintes brasileiros, já que não apenas mudou as regras do jogo durante o próprio jogo, nos casos da limitação da utilização de créditos fiscais decorrentes de ações judicias e do encerramento abrupto do Perse, como também furou a bola, em relação à desoneração da folha de pagamentos, após perder a queda de braço política e constitucional contra o Congresso Nacional, que tem a palavra final sobre qualquer questão no Estado Democrático de Direito. Democracias são construídas, inclusive, com base em segurança jurídica, separação de Poderes, previsibilidade institucional e confiança na relação entre Estado e cidadãos, de forma que mudanças bruscas de regras, enfiadas goela abaixo em nome da necessidade do aumento da arrecadação, não contribuem em nada para a pacificação social e o desenvolvimento do país.

(Colaboração de José Mário Neves David, advogado e consultor. Contato: [email protected]).

Publicado na edição 10.812, de sábado a quarta-feira, 13 a 16 de janeiro de 2024