Enquanto vivemos a ilusão de uma fonte perene de água potável na Terra, esbanjando-a e poluindo-a sem nenhum remorso ou consciência sustentável, os cientistas espaciais quebram a cabeça para criar tecnologias que forneçam essa substância fundamental à sobrevivência humana no espaço.
Não é uma tarefa fácil, aliás, nada no espaço é fácil quando o assunto refere-se à manutenção da saúde humana. Por vezes já discutimos nessa coluna alguns dos problemas enfrentados pelos astronautas quando empreendem uma viagem espacial em torno da Terra. Por exemplo, à Estação Espacial Internacional. Uma semana naquele laboratório orbital é suficiente para que a pessoa perca não só massa muscular, mas também massa óssea. E quanto mais tempo o astronauta permanece em órbita, mais ele se desgasta em função da ausência da gravidade, força essa que o corpo humano tão bem se adaptou e que não pode mais viver normalmente sem ela.
A água e o oxigênio, como o alimento, são elementos indispensáveis a qualquer ser humano. É impensável construir uma estação espacial cinco estrelas ou um foguete supermastersônico que vá a Marte em poucas semanas que não tenham esses elementos. O homem até consegue sobreviver vários dias sem o alimento, mas poucos sem a água e apenas alguns minutos sem o oxigênio.
Portanto, antes de pensarmos em por os pés em Marte ou qualquer outro planeta Solar ou extra-Solar, devemos pensar em como vamos obter esses elementos indispensáveis à vida.
Nos bastidores da tecnologia
Você, querido leitor, imagina como é que os astronautas das primeiras missões espaciais, como a Mercury, Gemini e principalmente Apollo – que levou o homem à Lua – obtinham água e oxigênio? Posso lhe adiantar que nenhum milagre ou efeito sobrenatural era operado naquelas naves.
O processo era na verdade muito simples e pouco científico: as naves carregavam os suprimentos necessários daqui da Terra. Era o dito sistema de suporte à vida “circuito aberto”. Todos os dejetos líquidos e gasosos formados durante a viagem eram descartados no espaço, como fazemos hoje com a maior parte de nosso rico lixo caseiro que é depositada em aterros sanitários, quando não vai parar em algum terreno baldio ou dentro de um riacho que corta a cidade.
Com o avanço da ciência e da tecnologia, a primeira idéia que vem à mente dos pesquisadores espaciais é a reciclagem, ou seja, o reaproveitamento de tudo aquilo que se imagina ser descartável ou considerado lixo. Por exemplo, a urina humana.
Se para alguns é difícil imaginar o homem bebendo urina reciclada, como foi difícil acreditar que ele pisou a superfície da Lua em 1969, para outros é uma questão de sobrevivência.
Bebendo o impensável
A urina é difícil de ser reciclada porque ela pode corroer equipamentos, obstruir mangueiras e inutilizar válvulas, entre outras perdas. No entanto, o processo básico para transformá-la em água potável não é complicado de se entender. Senão, vejamos. Logo que ela entra no aparelho de reciclagem, são adicionados alguns ingredientes químicos para evitar o crescimento de bactérias. Na sequência, a urina é enviada para um recipiente cilíndrico que possui uma bomba de vácuo capaz de separar a água dos demais elementos contidos na urina. De um lado sai água e do outro, um dejeto cheio de sal que é empacotado e acoplado ao lado de fora das naves de suprimento para ser incinerado na reentrada da atmosfera terrestre. À água resultante é adicionado iodo para afastar definitivamente as bactérias.
Esse mecanismo ainda não atinge os 100% de reciclagem da urina, mas como os pesquisadores não dormem no ponto, novas propostas estão sendo estudadas para melhorar esse desempenho e quem sabe transformar o sistema de suporte à vida de “circuito aberto” em “circuito fechado”, ou seja, totalmente independente dos recursos naturais terrestres.
Então, brindemos ao xixi, ou melhor, à ciência e à tecnologia!
(Colaboração de Wagner Zaparoli, douro em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).
Publicado na edição 10.779, quarta, quinta e sexta-feira, 9, 10 e 11 de agosto de 2023