A morte que vem como um sopro

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“Quero morrer como a minha mãe, sem fazer barulho. Quando eu tinha seis anos a gente tava andando na roça. De repente ela caiu e morreu”.

A roça a que se refere Maria, autora desse depoimento verídico, fica num canto perdido de Buenópolis, distante uns 300 km de Belo Horizonte. Maria e seus dois irmãos eram portadores da doença de Chagas e viveram por muito tempo sem saber por que sentiam palpitações, engasgos, constipação e outros sintomas relacionados a essa doença.

Há exatos cem anos Carlos Chagas iniciou um trabalho de combate a uma epidemia de malária que atingia as obras da Estrada de Ferro Central do Brasil, próximo ao povoado de Lassance, em Minas Gerais. Para tanto, montou um laboratório improvisado num vagão de trem onde estudava a vida de vários insetos sugadores da região, os quais eram promissores candidatos à transmissão de doenças à população local. Entre eles estava o percevejo hematófago popularmente conhecido como barbeiro (Triatoma infestans) que tinha o hábito de picar as suas vítimas durante a noite enquanto dormiam, e se esconder nas frestas das paredes das casas de pau-a-pique durante o dia.

Descobrindo as raízes do problema

Carlos Chagas, depois de realizar inúmeros exames com o inseto barbeiro, conseguiu encontrar protozoários no interior de seu intestino, os quais foram identificados posteriormente como sendo de uma nova espécie pelo Instituto Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro e batizado por Trypanossoma cruzi em homenagem ao patrono daquele instituto.

Sem desistir das pesquisas, Chagas encontrou em abril de 1909 o Trypanossoma no sangue de uma criança de dois anos chamada Berenice. Pode-se dizer que foi o primeiro caso identificado de uma nova doença humana, batizada de doença de chagas. A partir daí, ele realizou um feito notável, digno de Prêmio Nobel, embora não o ganhasse: identificou o parasita, seu vetor (inseto que o transmite) e a doença causada por ele.

Os números e os sintomas

No Brasil, a doença de chagas é a quarta causa de morte entre as doenças infecto-parasitárias. São registrados entre 4 a 5 mil óbitos por ano no país, que possui em torno de 2 a 2,5 milhões de portadores, embora o número possa ser muito maior do que este, já que muitas pessoas convivem toda a vida com a doença sem ao menos saber de sua existência.

Na escala global os infectados alcançam a cifra de 16 milhões, num grupo de risco de 100 milhões, com 20 mil mortes anuais. Em geral, a doença atinge todas as regiões da América do Sul, Central e parte da América do Norte, em especial, os EUA.

A doença normalmente possui duas fases: a aguda e a crônica. Na aguda é comum a manifestação do “chagoma”, inchaço e vermelhidão devido à picada do barbeiro. De 2 a 3 meses depois, cerca de 20 a 60% dos infectados evoluem para a fase crônica que pode ser assintomática entre os primeiros dez a vinte anos, quando o parasita está se reproduzindo lentamente no organismo. A partir daí, os sintomas podem variar: falha no sistema nervoso (levando a pessoa à demência), problemas cardíacos, no trato digestivo e fígado.

Existem alguns fármacos como o nifurtimox, alopurinol e benzonidazol destinados para a fase aguda da doença cujo sucesso de cura ou mitigação da cronicidade gira em torno de 80% dos casos. A fase crônica, por sua vez, não tem cura, pois os danos em órgãos como o coração e o sistema nervoso são irreversíveis.

 

A exclusão

O ano de 2009 marcou o centenário da descoberta da doença de chagas pelo brasileiro Carlos Chagas. Essa data deveria ter servido para uma ampla reflexão que envolve questões cruciais relacionados à doença, em especial, o explícito abandono de pacientes infectados, seja por governos ou por laboratórios. Eles estão morrendo como passarinhos, silenciosamente e esquecidos.

Como se sabe, esses pacientes vivem normalmente na extrema pobreza, o que os caracteriza como um grupo fora do mercado da indústria farmacêutica. Para se ter idéia, em 2007 foram gastos apenas US$10,1 milhões em pesquisas no mundo com a doença de chagas, um valor completamente irrisório perante o valor investido em pesquisas com outras doenças.

No Brasil existem estudos relacionados a células-tronco, a novos inseticidas e drogas antifúngicas que têm se mostrado eficientes contra o T. cruzi. Mas ainda assim, são esforços não sistematizados. É necessária mais vontade política para se traçar um plano concreto de continuidade ao combate à doença. Como dizia Carlos Chagas em 1934, “o importante, acima das glórias acadêmicas, é acabar com esta doença e cuidar dessa pobre gente”.

Pena que nas mentes obtusas dos bastardos de nossas classes políticas atuais, tal idéia jamais fará figura.

Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação.

Publicado na edição nº 10276, de 21 e 22 de junho de 2018.