
Marcelo Bosch Benetti dos Santos
A vergonha enquanto experiência subjetiva se inicia na infância, com o desenvolvimento psicológico e o amadurecimento emocional, que por sua vez ocorrem em estreita associação com o contexto sociofamiliar na qual a criança está inserida. O modo como o ambiente irá influenciar a instalação e a reprodução desse sentimento dependerá de diferentes fatores, como: as exigências e expectativas depositadas sobre a criança; a maneira como estas cobranças irão ocorrer; os procedimentos educativos na qual ela será submetida; e os modelos identificatórios que as figuras parentais oferecerão.
A vergonha, tal como a culpa, possui uma função social importante, na medida em que favorece a adequação e a assertividade nas relações interpessoais. Entretanto, pessoas excessivamente tímidas ou que apresentam comportamentos fóbicos nos mais diversos contextos sociais detêm um sofrimento perturbador.
Em sua dimensão disfuncional, a vergonha é experimentada mediante reações somáticas (corporais) semelhantes às sensações de medo e ansiedade. Assim, rubor excessivo, tremores das mãos, náuseas, urgência miccional, respiração curta, taquicardia, sudorese, enrijecimento muscular, menor mobilidade corporal, hesitações na fala, falhas de memória e dificuldade de concentração compõem algumas vivências típicas da pessoa envergonhada.
Do ponto de vista psicológico, o sentimento de vergonha pode ser definido como: o medo de se expor ao outro e o medo de ser ignorado pelo outro. Ou seja, o desejo de ser reconhecido e, ao mesmo tempo, o temor de não possuir as características supostamente necessárias para esse reconhecimento. Assim, o tímido e, de uma maneira mais patológica, o fóbico social habitam este conflito paradoxal, o conflito entre querer e não querer ser visto.
Aprofundando a compreensão da vergonha patológica, dois aspectos merecem destaque: a depressão e o narcisismo. Vale ressaltar que a ideia de depressão, aqui, não corresponde aos transtornos depressivos, patologias graves do humor que podem culminar em comportamentos autodestrutivos e suicidas. A característica depressiva do envergonhado diz respeito a uma culpa traduzida por uma sensação de insuficiência; insuficiência em corresponder àquilo que o outro supostamente espera.
Desse modo, um funcionamento típico do envergonhado é se agarrar – ou, o que é mais grave, se identificar – justamente com aquilo que supostamente lhe falta. Com isso, ele passa a justificar seus insucessos ou incompetências (reais e imaginários) a partir de sua incompletude estrutural.
Quanto ao aspecto narcísico da vergonha patológica, este, na realidade, pode ser definido como “precariedade narcísica”. Seria como se o sujeito tivesse sido privado de um investimento narcísico consistente por parte de seus principais cuidadores. Ou seja, como se o ego, em seu processo de formação, fosse consolidado em meio a narrativas de subtração, como: “eu não sou”, “eu não posso”, “eu não consigo”, “eu não sou capaz”…
Não é de se surpreender, portanto, a baixa autoestima e autoconfiança do tímido e do fóbico social.
Em contrapartida, também não deve gerar surpresa o que muitas vezes é apresentado de maneira oposta: certo preciosismo ou certa prepotência velada que acompanha a pessoa tipicamente tímida. Apesar desse funcionamento habitual, esta conduta comumente esconde sensações de insegurança e deflagram a desconfiança em relação a suas próprias competências e potencialidades. Nesse sentido, não à toa o envergonhado demanda que os outros constantemente reconheçam suas capacidades.
O que fazer, então, para reverter este cenário? Um caminho possível é o que muitos psicoterapeutas denominam de “exercício do autoperdão”. Isso significa em o sujeito poder reconhecer as próprias falhas e insuficiências, inclusive a partir daquilo que supostamente esperaram dele. Esse trabalho psíquico deve, ainda, vir acompanhado pela valorização das próprias potencialidades e capacidades atuais.
Não se trata, portanto, de estancar a ferida narcísica, no sentido de escondê-la a sete chaves. Mas sim permitir sua cicatrização. A cicatriz da alma é o resultado final de um processo doloroso, no qual tomamos consciência de não sermos seres totais, plenos, para, enfim, sermos mais verdadeiros – em primeiro lugar, com nós mesmos.
(Colaboração de Marcelo Bosch Benetti dos Santos, Psicólogo, especialista em Psicologia Clínica, mestrando em Psicologia Clínica – PUC-SP).