Falando dos loucos

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Visitar um ambiente que diverge dos padrões normais da sociedade por si só já é um grande desafio. Há muitos anos eu passei por essa experiência quando visitei uma instituição em Bebedouro que abrigava velhinhos, alguns aparentemente normais, outros à beira da loucura (sob meu ingênuo ponto de vista). De fato foi uma experiência única que me fez abrir os olhos para aqueles que a sociedade normalmente descarta ao primeiro sinal de fraqueza. Observei pessoas andando em círculos, gritando palavras aparentemente desconexas, repetindo movimentos infundados, observei outras quietas e imóveis, como que posando para uma fotografia que nunca seria tirada, enfim, um desorganizado e diferente mundo daquele que eu conhecia. Confesso que fiquei temeroso todo o tempo que ali permaneci, muito menos pelo perigo de qualquer agressão física, mas mais pelas diferenças comportamentais tão evidentes naquelas pessoas.
A lição foi boa. Impulsionou-me a ler obras de Skinner, Pavlov e Jung, entre outros, e estudar os desígnios do homem perante a natureza impávida. Hoje reconheço: quem vive ou trabalha nesse tipo de ambiente é um verdadeiro herói.

Falando dos anjos

Ela ficou conhecida por buscar um lado mais humano na convivência com os doentes mentais e por propor uma alternativa para os tratamentos tradicionais da época. Nise da Silveira, alagoana de Maceió, nasceu em fevereiro de 1905, e por esses feitos e por ser mulher, foi discriminada até as raízes de sua alma. Nem por isso desistiu de seus objetivos, e pode-se dizer, venceu na vida e ajudou muitos a vencer.
Nise estudou num colégio de freiras onde só havia meninas e cursou uma faculdade onde só havia homens. Formada médica aos 21 anos, logo após a morte do pai e ainda no início de sua trajetória profissional, enfrentou o desafio de viver sozinha no Rio de Janeiro e com parcos recursos financeiros. Seu grande interesse era a neurologia, mas quis o destino que a psiquiatria fosse o seu grande desafio. E o foi!
Aprovada em um concurso (cuja matrícula fora realizada pelo professor à revelia da aluna), Nise começou a trabalhar no centro psiquiátrico da Praia Vermelha e a se apaixonar pelo assunto psiquiatria. Sem dinheiro, foi obrigada a se mudar para as instalações do centro psiquiátrico e, convivendo com os pacientes 24 horas por dia, descobriu um mundo que poucos conheciam.
Foi o caso de uma paciente esquizofrênica que era completamente alheia ao mundo exterior. Apesar de Nise tentar estabelecer um diálogo com ela, nunca havia conseguido. Numa ocasião em que a enfermeira de quarto, elaborando uma lista de roupas da própria paciente grafou a palavra peignoir incorretamente, aconteceu o improvável: a paciente imediatamente pegou o lápis e corrigiu a palavra.
Essa e inúmeras outras situações inusitadas levaram Nise a pensar num trabalho não tradicionalista (normalmente se aplicava a lobotomia, o coma insulínico e os eletrochoques) para o tratamento dos pacientes na época. Começou a oferecer-lhes a pintura, a costura, a dança, entre outras formas de expressão, e observou que todos se envolviam diletantemente com os seus respectivos trabalhos. Isso a fez, em 1947, reunir os trabalhos dos pacientes numa exposição para a sociedade, a qual teve uma repercussão extremamente positiva entre os cientistas tradicionalistas e críticos de arte.
Em 1952 Nise foi adiante e criou o Museu de Imagens do Inconsciente no Rio de Janeiro que comportava todas as obras de seus pacientes. Era o que ela denominava um centro vivo de estudos e pesquisas do processo psicótico.

O caso do Sapateiro

Um sapateiro de nome Carlos havia sido internado pela família após relatar uma visão que tivera do “planetário de Deus”. Era quase impossível travar qualquer tipo de contato verbal com ele, até o dia em que o seu cachorro predileto foi atropelado. Carlos, então, solicitou dinheiro a Nise de forma clara e inteligível, foi à farmácia e voltou com os medicamentos, o troco e a nota fiscal. Aliviado, voltou ao seu estado anterior.
Nise sempre se questionara por que tais fenômenos aconteciam. E dizia: ”quem passa por experiências radicais como a loucura, a prisão, a tortura, nunca mais volta o mesmo”.
Nise trabalhou até a sua morte, em outubro de 1999.

Publicado na edição nº 10131, de 25 e 26 de maio de 2017.