Franz Josef Gall (1758-1828) e seu discípulo Johann Gaspar Spurzheim (1776-1832), dois médicos alemães, foram os responsáveis pela criação e popularização da cranioscopia, também conhecida como frenologia, uma teoria que indica características da personalidade e grau de criminalidade a partir das protuberâncias e calombos da cabeça. Por exemplo, um calombo pouco acima da testa seria sinal de benevolência exagerada. Uma protuberância no entorno das orelhas seria um indício de agressividade exacerbada.
Embora tal teoria tenha caído em descrédito já em meados do século XIX, servindo inclusive de alvo a charges e pinturas bem-humoradas, o fato é que vez por outra o tema volta perigosamente à moda como se fosse a mais requintada ciência a ser divulgada e seguida. Vejamos o exemplo do médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), que em 1876 publicou a obra “O homem delinqüente” em que dizia ser o criminoso feito de feições selvagens – testa inclinada, orelhas grandes e braços alongados, entre outros atributos. Lombroso, como Gall, fez história e muitos seguidores, como o psiquiatra inglês Bernard Hollander (1864-1934) e o pedagogo belga Paul Bouts (1900-1999). Mesmo os nazistas e boa parte dos eugênicos norte-americanos avançaram com suas idéias de raça pura baseando-se nas alegorias da frenologia.
O desastre é muito bem conhecido de todos: milhões de mortos e outros tantos de inutilizados para a vida social.
Ideia persistente
É difícil entender porque algumas teorias conseguem sobreviver por séculos, ora desacreditadas, ora fundamentais para a evolução da humanidade, numa espécie de pulsação dicotômica entre o bem e o mal.
A frenologia e os seus derivativos na verdade nunca desapareceram das janelas ditas científicas. Em 2012, dois pesquisadores da Universidade de Wisconsin nos EUA publicaram um artigo na revista “Proceedings of the Royal Society B”, editada pela prestigiosa Royal Society da Inglaterra. O título do trabalho era: “Mau até o osso: estrutura facial prediz comportamento antiético” e dava conta de dois experimentos comportamentais envolvendo 192 alunos de MBA daquela escola. O objetivo era mostrar que quanto mais larga a face do estudante, maior seria a propensão para a trapaça, a mentira e até o roubo.
Os resultados da pesquisa, ao seu final, indicaram ser verdadeira a tese. Dados estatísticos compilados indicaram que quanto mais larga a face do estudante (somente os meninos, o estudo não conseguiu revelar-se para as meninas), maior propensão para o desvio comportamental antiético.
Absurdo perigoso
Embora conduzido dentro dos aspectos técnicos científicos, a pesquisa de Wisconsin não passou de risível para muitos cientistas, entre eles a geneticista Maria Catira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o antropólogo físico Rolando Gonzáles-José, do Centro Nacional Patagônico, de Puerto Madryn, e do especialista em genética psiquiátrica Claiton Baidu, também da Federal do Rio Grande do Sul.
Os três fizeram um estudo recente envolvendo cinco mil indivíduos pertencentes a 94 grupos populacionais modernos distintos e não encontraram nenhum indício significativo de que populações ou mesmo indivíduos com maior grau de belicosidade, comportamento agressivo ou mediado pela sensação de poder tenham um rosto mais largo. De acordo com Baidu, não se trata de afirmar que a genética ou biologia não têm influência sobre o comportamento das pessoas. Pelo contrário, elas têm, mas não de forma determinística como levam a pensar equivocadamente não só os pesquisadores de Wisconsin, mas toda uma seleta classe de cientistas ao longo dos últimos dois séculos, iniciados por Gall.
Para essa classe, parece-nos que o velho ditado “quem vê cara não vê coração” funciona plenamente, mesmo que a cara não mostre mais do que dois olhos, uma boca e um nariz.
Publicado na edição nº 9844, dos dias 21 e 22 de maio 2015.