Mantendo o equilíbrio

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Os livros didáticos de ciências geralmente nos ensinam que no ciclo global da água as árvores têm papel importante na manutenção da umidade da atmosfera. Cerca de 84% dessa umidade advêm da evaporação de rios e oceanos e 16% chegam pela transpiração das plantas. É assim que a natureza, através de sua sistemática precisa, consegue equilibrar e manter o ambiente propício à multiplicação da vida no planeta. Não fosse isso, talvez a Terra fosse um inóspito planeta estéril como tem se mostrado o planeta Marte (embora notícias recentes deem conta da existência de água por lá) ou mesmo como a nossa eterna companheira, a Lua.
Entretanto, o que os livros didáticos – pelo menos alguns que consultei – não mostram é a existência de um ciclo inverso da água que se apresenta tão importante quanto esse mais popular que conhecemos.

Do ar para a terra

A equipe do ecólogo da Unicamp, Rafael Oliveira, vem trabalhando há alguns anos no entendimento da contribuição que plantas nativas de florestas, como a Mata Atlântica, têm na manutenção e preservação climática.
Se por um lado se sabe que essas plantas canalizam a água dos lençóis freáticos para o ar numa ação de absorção pelas raízes e transpiração pelas folhas, começou-se a entender que tais plantas também protagonizam o processo inverso da água. É o que a equipe de Oliveira tem tentado demonstrar nos estudos de mudanças climáticas em montanhas brasileiras.
Já em 2004, o biólogo Todd Dawson da Universidade da Califórnia descreveu como as sequóias transportam água na contramão do processo convencional. Elas são aquelas árvores imensas que chegam a alcançar mais de 100 metros de altura e costumam se desenvolver no estado da Califórnia nos Estados Unidos, onde o índice pluviométrico pode ser comparado ao do sertão nordestino. De acordo com Dawson, o que salva essas árvores de uma morte certa é a neblina que vem do mar e que satura o ar com vapor d’água. Nesse cenário de seca eminente, as folhas das sequóias param de transpirar cessando o fluxo de baixo para cima e iniciando um fluxo de cima para baixo, através da absorção da água disponível na neblina, já que o solo não apresenta índice de umidade suficiente para mantê-las.

Matas brasileiras

Em processo semelhante de identificação feito por Dawson nos EUA, Oliveira buscou uma região de mata no Brasil formada por florestas nebulares que entremeavam períodos de seca. Escolheu a serra da Mantiqueira para os estudos, mais precisamente o Parque Estadual de Campos de Jordão, onde chove pouco e há neblina do começo ao fim do dia.
Para entender como a árvore nativa da região casca-de-anta sobrevive nessas condições, sua equipe cultivou amostras da espécie em laboratório a base de borrifação de água pesada (contendo hidrogênio mais pesado do que o normal) que pode ser detectada por um espectrômetro de massa.
Para que o leitor tenha ideia, esse processo é semelhante àquele em que nós recebemos uma injeção de contraste na veia para exames de tomografia, seja para identificar uma lesão muscular ou alguma não conformidade com nossas artérias.
Ao final do experimento Oliveira e equipe detectaram o hidrogênio no solo próximo à raiz da planta, o que indica o fluxo proposto de cima para baixo como havia descrito Dawson com as sequóias em 2004.
Isso ajuda a explicar a existência de muitos riachos que nascem no alto das montanhas e que acabam por formar rios maiores nas planícies, responsáveis pelo abastecimento hídrico de várias cidades da região, como é o caso do Vale da Paraíba.
Fica evidente também que a natureza, quando precisa, utiliza os seus mecanismos de sobrevivência: se o ar é seco e o solo é úmido, as plantas canalizam o fluxo de água de baixo para cima; já quando o ar é úmido e o solo é seco, as plantas canalizam o fluxo de água no sentido inverso, mantendo assim um equilíbrio positivo para o meio-ambiente.

Publicado na edição nº 9905, dos dias 22 e 23 de outubro de 2015.