As drogas acompanham a humanidade muito, mas muito antes da era cristã. Para que o leitor tenha ideia, a Cannabis sastiva – popularmente conhecida como maconha – surgiu na Ásia Central há mais de 8.000 a.C.. As folhas de coca, nativa da Bolívia e do Peru, são mastigadas pelos povos da região há pelo menos oito mil anos. O ópio é conhecido na Ásia Menor desde 3.400 a.C.. E a lista não para por aí. A mandrágora, o cogumelo vermelho, a beladona e a datura, entre várias outras, são muito bem conhecidas pelas sociedades que as processam e as consomem de longa data.
Nos primórdios da história o uso dessas drogas estava mais vinculado aos fins medicinais, como o alívio da dor, tratamento da insônia, controle da tosse e até redutor da fome. Conforme o tempo avançou, muitas começaram a ser utilizadas para fins recreativos, principalmente aquelas com características alucinógenas. Com alto poder viciante e espalhando-se pelos quatro cantos do mundo de forma muito rápida, algumas acabaram por se tornar um sério problema de saúde pública, haja vista a miserabilidade imputada à sociedade devido ao seu uso recorrente.
Um início feliz para um final desastroso
São vários os fatores que levam uma pessoa – normalmente o jovem – a experimentar a droga pela primeira vez. Pode ser uma simples curiosidade, pode ser porque os amigos utilizam ou está na moda, para fugir do tédio ou das preocupações. Ou seja, começa-se a utilizá-la de forma recreativa, sem compromissos, pensando somente na curtição imediata, no prazer momentâneo, sem olhar para as reais consequências do depois.
Pois bem, alguns de fato experimentam e seguem suas jornadas sem apego. Muitos, entretanto, entram em uma espiral de recorrência e dependência trilhando o caminho do calvário, da dor e da miserabilidade. Perdem completamente a razão, o senso crítico e a civilidade. Vivem à margem da sociedade, sem um teto, família, propósito ou rumo. Um verdadeiro desastre muitas vezes irremediável.
Tentando equilibrar a equação
A ciência e os cientistas, que sempre estiveram atentos às aflições da humanidade, já olharam para esse problema por diversos prismas, tentando encontrar um elemento que pudesse equilibrar a balança pesada dos males resultantes. Embora haja pesquisas espalhadas pelo mundo todo, ainda não foi encontrada a bala de prata capaz de combatê-los em definitivo.
Em março desse ano, a imunologista do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, Denise Morais da Fonseca, realizou uma pesquisa para fins acadêmicos baseado em revisões de literatura acerca das vacinas contra as drogas. Uma obtida de 2022 levantou 23 ensaios clínicos já concluídos sobre vacinas antidrogas, dos quais, alguns voltados especificamente à cocaína. Infelizmente, todos falharam. O desafio de fato não é pequeno.
Afinal, uma luz
Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, liderado pelo professor e médico psiquiatra Frederico Duarte Garcia, divulgou há poucos meses um trabalho sobre o tema. A equipe está desenvolvendo uma vacina, cujos ensaios iniciais em animais indicaram que o imunizante conseguiu estimular a produção de anticorpos contra a molécula de cocaína, embora ainda sem evidências de que ele consiga reduzir a dependência da droga.
Embora tudo seja muito recente, Duarte Garcia afirma que os ensaios com roedores e saguis não apresentaram efeitos colaterais, a não ser uma leve reação no local da injeção.
Fazendo aqui uma breve explicação, o imunizante criado pela equipe estimula o organismo a produzir anticorpos que identificam e se ligam às moléculas de cocaína, fazendo com que esse conjunto (anticorpo + cocaína) não atravesse a barreira hematoencefálica (estrutura do cérebro que impede ou dificulta a passagem de substâncias do sangue para o sistema nervoso central) e chegue ao cérebro. Com a droga fora do cérebro a pessoa não sente os efeitos prazerosos que normalmente acionam o circuito de recompensa cerebral e provocam a compulsão. Sem a compulsão, o paciente ganha tempo para retomar a vida familiar e profissional, podendo buscar outras fontes de prazer.
Antes dos ensaios clínicos com humanos, serão necessários mais testes com animais, o que promete ser uma jornada bem desafiadora. Mas, a aposta da equipe é grande, tanto quanto a esperança de que em um futuro não tão distante se consiga ter, enfim, um remédio à altura dessa devastadora doença.
Para quem quiser mais detalhes sobre a pesquisa, vale a pena passar o olho no link https://revistapesquisa.fapesp.br/uma-potencial-vacina-contra-a-cocaina/.
(Colaboraçaõ de Wagner Zaparoli, douro em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).
Publicado na edição 10.791, quarta, quinta e sexta-feira, 4, 5 e 6 de outubro de 2023