O ribeirinho que mal comia peixe

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É de se pensar que um povo que vive às cercanias do mar ou de rios tenha como principal hábito alimentar os peixes e frutos marítimos. Afinal, o alimento está ali, vamos dizer, disponível para ser consumido. Entretanto, um estudo arqueológico realizado por pesquisadores da USP na região sudeste do estado de São Paulo, mais precisamente no Vale do Ribeira, indica que no passado recente a situação talvez não fosse bem essa.
Em 2000 escavações naquela região descobriram um esqueleto humano, apelidado Luzio, com cerca de 10 mil anos de idade. Embora vivesse há dezenas de quilômetros do litoral, carregava fortes características que o ligavam ao mar, como adornos feitos de dentes de tubarão e rabos de arraia. Possuía também marcas de remador ou nadador em sua clavícula e fazia cemitérios em que os mortos eram cobertos por uma grossa camada de conchas, característica comumente conhecida como sambaqui aos povos litorâneos.
O mais interessante dessa história foi revelada por um estudo físico-químico de Luzio, a partir de amostras de colágeno e apatita, retirados de seus ossos.

 

Um cardápio do Brasil central

Os resultados desse estudo indicaram que Luzio tinha um cardápio baseado em carne de caça (roedores, porcos-do-mato e veados), tubérculos e frutas. Praticamente nenhum peixe ou crustáceo. Em outras palavras, um cardápio do Brasil central, sem nenhuma relação com o litoral. De acordo com a bioantropóloga Sabine Eggers, esse estudo foi capaz de traçar a linha alimentar de Luzio pelos últimos seis meses de sua vida, sendo os testes realizados em dois laboratórios diferentes, chegando aos mesmos resultados. Conforme Eggers comenta, não se pode dizer que Luzio nunca comeu peixe, mas era um alimento raro em sua dieta.

Um outro fator que corrobora com a ideia da dieta singular é a preservação da arcada dentária do esqueleto. Eggers encontrou somente um desgaste horizontal e quatro microcáries, fato que surpreende para um homem que viveu há dez milênios. Além do que, para os habitantes de sambaquis de mar é comum deparar-se com arcadas dentárias mal preservadas. A ingestão cotidiana de peixes e moluscos coloca os dentes dos sambaquieiros em contato constante com restos de areia e conchas que contribuem fundamentalmente para o seu desgaste.

 

Os traços negroides

O nome atribuído a esse esqueleto do Vale da Ribeira – Luzio – adveio de suas semelhanças físicas com Luzia, o crânio humano mais antigo encontrado no Brasil, com cerca de 11 mil anos. Luzia viveu em Lagoa Santa, arredores de Belo Horizonte, e possuía traços negroides semelhantes aos atuais aborígenes australianos e africanos. Tudo indica que essa linhagem não deixou descendentes na América, já que as atuais tribos de ameríndios derivam das antigas populações mongoloides, típicas da Ásia, as quais se estabeleceram pela região posteriormente.
Embora os estudos tenham evidenciado inúmeros novos fatos e contribuído para um melhor entendimento da vida da população que ali vivia no passado, resta uma grande dúvida a ser dirimida: aos se estabelecer na região, Luzio veio do mar ou do planalto?
Não é uma questão que tem resposta trivial. Lembro ao leitor que esse assunto já provocou debates acalorados na academia, principalmente sobre o tema que trata da ocupação do continente americano. E a cada nova descoberta de um esqueleto ou parte dele, a temperatura só tende a aumentar, o que é bom para a ciência, para a história e para o conhecimento humano. Afinal, quem quer viver na penumbra ou no mistério da ignorância?

Publicado na edição nº 9672, dos dias 20 e 21 de março de 2014.