Remédios personalizados

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Imaginem a cena de duas dondocas chegando simultaneamente à mais badalada das festas da cidade: num primeiro momento elas apenas se entreolham; em um segundo, forçadas por um instinto fatal, dissecam-se reciprocamente através de olhares mortalmente incisivos e descobrem por acaso que estão usando exatamente o mesmo vestido, sapatos e brincos. Bem, ao menos uma delas terá um ataque de nervos antes da festa terminar (sic!).

Brincadeiras à parte, o fato é que o ser humano (e que fique bem claro, isso não é exclusividade das mulheres) sempre sentiu a necessidade de ser único em seu pedaço. Dessa necessidade o homem classificou o seu mundo material: desenvolveu carros coloridos, fabricou telefones celulares com vários formatos, criou relógios com pulseiras personalizadas, desenhou roupas com estilos, cores e texturas diferentes, tudo isso para que ele pudesse se diferenciar (ainda mais) dos demais.

Em uma época em que a evolução tecnológica marca presença decisiva na vida de cada ser, os medicamentos não poderiam ficar fora dessa espécie de classificação, muito embora os motivos aqui não sejam baseados na vaidade. De acordo com a Associação Médica Americana, dos 2,2 milhões de norte-americanos que contraem doenças anualmente, mais de 100 mil morrem devido a efeitos colaterais de medicamentos. No Brasil, o sexto país em consumo de medicamentos no mundo, são estimadas 24 mil mortes anuais por intoxicação medicamentosa. Surge então a pergunta: o que de fato acontece para que tantas pessoas sofram com os remédios que via de regra foram criados para curar?

Uma das prováveis explicações seria a existência de uma variabilidade de resposta das pessoas aos medicamentos, causada grandemente por fatores genéticos. Em outras palavras, um medicamento constituído por uma determinada composição e quantidade pode fazer bem para um indivíduo, mas matar outro, dependendo dos genes de cada um deles.

 

A variabilidade de resposta

De acordo com artigo publicado na revista brasileira Ciência Hoje, a primeira referência que se tem notícia acerca da variabilidade da resposta farmacológica é atribuída ao matemático grego Pitágoras em 510 a.C., sobre a intoxicação de alguns indivíduos (mas não de todos) por determinadas favas. Apesar de ser uma referência primitiva e pouco relacionada aos fármacos, a observação de que alguns indivíduos não foram afetados pela ingestão da fava foi um claro sinal da variabilidade de resposta.

Entretanto, somente em meados do século 20 é que estudos sistematizados demonstraram explicitamente a relação entre alterações genéticas e os efeitos dos medicamentos. Essa área de estudos passou a denominar-se nas últimas décadas de farmacogenômica ou farmacogenética.

Mas, o que causa realmente a variabilidade de resposta dos indivíduos aos medicamentos?

Explicando de forma simplista, alguns genes do nosso corpo podem apresentar mutações que atuam nas atividades enzimáticas das células provocando algum tipo de desordem em seu mecanismo de funcionamento. Quando uma determinada substância entra no organismo, dependendo de suas variantes aléticas, três tipos de reações podem acontecer: a substância pode ser benéfica ao organismo; a substância pode não mudar nada no organismo; ou a substância pode ser maléfica ao organismo.

Assim, pensando especificamente em fármacos, aquele comprimido que faz um bem danado para a sua dor de cabeça pode não resolver a dor de cabeça de seu vizinho, caso os genes de vocês possuam diferenças explícitas.

 

Remédios sob medida

Diante dessas constatações, pesquisadores e indústrias farmacêuticas vislumbraram um grande desafio pela frente para transformar o tradicional ciclo de criação de fármacos de uso universal em fármacos com uso mais específico possível, baseados em testes genéticos daqueles que os necessitam. Não é uma tarefa fácil, pois existem implicações complexas como a relação médico-paciente, o protocolo de estudos e exigências para aprovação de novos fármacos e a legislação para registro de medicamentos nas agências reguladoras.

No Brasil, devido à miscigenação de raças que provoca uma maior variabilidade genética, obter um remédio sob medida pode se transformar em um verdadeiro suplício, embora hoje, no atual cenário de bandalheira política e econômica, o verdadeiro suplício seja mesmo fazer chegar a saúde com qualidade e em escala à população que vive abaixo do nível mínimo de civilidade