Um gênio insolente

Wagner Zaparoli

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Para os médicos provavelmente o nome Paracelso deva soar familiar, como certamente acontece ao citarmos Hipócrates, Galeno e Avicena. Para o leitor não tão habituado à ciência ou à história, o nome pouco pode significar.

Seu nome verdadeiro era Theophrastus Bombast Von Hohenhein, nascido na Suíça em 1493. Esse personagem marcou a ciência do século XVI tanto pela sua inteligência destacada, quanto pelo seu comportamento impetuoso, contraditório e extremamente complexo. Devido a essas características, foi amado e reverenciado como gênio por alguns e odiado e amaldiçoado como um demônio por outros. Esse dualismo parece ter balizado a sua vida, desde muito jovem até os seus últimos dias.

Paracelso não se encaixa em nenhum perfil padrão de cientista. Frequentemente bêbado, viveu boa parte da sua vida perambulando por estradas da Europa, muitas vezes como um perfeito indigente. Na adolescência aprendeu a manipular os minerais com o seu pai, um exímio conhecedor do assunto. Também enveredou pela alquimia, o que lhe agregou profundos conhecimentos dos elementos químicos. Entretanto, seu destaque maior foi na cura das pessoas, incluindo ai mendigos – que lhe serviam de companhia nas fases mais negras de sua vida – a nobres poderosos os quais costumavam recompensá-lo com altas quantias.

Os ideais do desatinado

Esse temperamento desregulado e personalidade para arrumar encrencas foram algumas das causas que sempre mantiveram Paracelso com os pés na estrada. Mas não só isso, em seu pensamento, o verdadeiro médico só poderia aprender a medicina de uma única maneira. Dizia ele “um médico deve sair à procura de velhas comadres, ciganos, feiticeiros, tribos nômades, velhos ladrões e proscritos dessa espécie e aprender com eles. Um médico deve ser um viajante… Conhecimento é experiência”.

Paracelso tinha uma vontade imensa de divulgar ao mundo novos métodos científicos. Declarava que a alquimia, uma febre entre os cientistas da época, estava perdendo seu tempo na tentativa vã de produzir ouro. Deveriam usá-la para trabalhos mais nobres, como a produção de remédios químicos para moléstias e doenças. Talvez a medicina assim pudesse de fato tornar-se uma ciência, propiciando o registro em livros de todo o conhecimento adquirido, atribuindo nomes claros a remédios e que fossem universalmente aceitos, acompanhados por descrições simples e claras do preparo e uso. Não havia  mais a necessidade de teorias ou superstições, arrematava ele, nem tampouco remédios feitos à base de ervas.

Bem se vê que os seus ideais instigavam o novo e o ousado, embora ainda praticasse as velhas técnicas alquímicas e acreditasse nos ditos populares da cura milagrosa por plantas e ervas. Era um verdadeiro espírito contraditório, o que não nos surpreende.

Reinando na Basiléia

Numa de suas várias viagens, Paracelso visitou uma cidade chamada Basiléia. Era o ano de 1527. Lá existia um influente nobre de nome Frobenius que beirava o desespero com a iminência da perda de uma das pernas. Todos os médicos locais já haviam dado o diagnóstico favorável à amputação e instantes antes do ato drástico, Paracelso conseguiu dissuadir a todos, convencendo-os a adotar um outro tipo de tratamento. A história não é clara no método, mas Paracelso realizou um tratamento que curou totalmente a perna de Frobenius. Não só foi financeiramente bem recompensado como caiu nas graças do nobre. Em pouco tempo ele receberia o cargo de superintendente médico da cidade e professor da Universidade de Basiléia. Eis que chegara o momento de fixar-se em um local para desenvolver e aplicar as suas idéias. Só precisava manter-se bem comportado.

O gene inquietante

Seria mais fácil ver a alquimia obter o ouro a ver Paracelso levando uma vida bucólica de pastor. Já em sua primeira aula com sala lotada, ele anunciara que iria revelar o maior segredo da ciência médica. Logo em seguida abriu uma vasilha contendo excremento. Imediatamente os médicos se levantaram para sair e escutaram de Paracelso: “Se não vão ouvir os mistérios da fermentação putrefativa, são indignos do nome de médicos”. Ele acreditava que a fermentação era o mais importante processo que ocorria no corpo humano.

Dessa apresentação em tom quase bizarro, Paracelso continuou nos meses seguintes a adotar um comportamento nada ortodoxo. Por exemplo, promoveu junto a um grupo de alunos a queima de livros de Galeno e Avicena – grandes médicos do passado – em praça pública; detratou os intelectuais com arrogância incomensurável dizendo “todas as universidades e todos os autores antigos juntos têm menos talento que meu traseiro”; fez inimigos os médicos e boticários da cidade ao usar o cargo para deleite da própria glória; enfim, em pouco tempo havia conseguido criar um mar revolto e incontrolável à sua volta.

A sua derrocada em Basiléia iniciou-se com a morte de Frobenius e terminou com uma acusação aos magistrados da cidade. Foi a gota d’água! Paracelso deixou a cidade esquivando-se pela noite escura como fizera tantas vezes e ainda voltaria a fazer outras tantas.

Se o seu passado desregrado, mediado pela mendicância e bebedeira não o perdoou, já que morrera com apenas 46 anos como um velho cansado e senil, a história da ciência certamente não o esqueceu. É sabido que foi através dele que elementos químicos começaram a surgir pela primeira vez em cerca de dois milênios; foi responsável por obras sistematizadas sobre a medicina, como “O grande livro da cirurgia”; e deixou um grande legado da boa clínica que dizia “se você evitar a infecção, a Natureza curará a ferida por si mesma”.

A medicina atual deve muito a esse gênio insolente, mesmo que não consiga reconhecer.

(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).

Publicado na edição 10.769, quarta, quinta e sexta-feira, 5, 6 e 7 de julho de 2023